11/11/2009

O SARGENTO DE ISADORA

Quando completou nove anos de vida em comum com o Sargento, Isadora disse à mãe que nada havia para comemorar, a cerimônia de casamento era uma lembrança distante e o álbum de fotografias estava esquecido em alguma gaveta de armário. Inúmeras vezes pensou em voltar para a casa dos pais e só não o fez com receio da reação do Sargento. Ele poderia passar das agressões quase diárias à pena de morte. Afinal, se espancava quando encontrava comida fria, o que não faria se fosse abandonado? Não mataria por amor, mas se sentisse o orgulho ferido, sim. Na verdade, nunca sentira amor por ele, a rigidez da educação familiar e a inexperiência empurraram a jovem delicada aos braços brutos do Sargento. Gastou alguns anos de sua vida tentando transformar o medo em respeito. Em vão. Para ele, era uma questão de hierarquia, a mulher era uma espécie de soldado, pronta sempre a engraxar suas botas e preparar a farda. Não havia uma só parte do corpo que ainda não tivesse sido maltratada pelo marido. Os filhos corriam a se esconder sob as cobertas, mal ouviam os passos barulhentos do pai, o medo arregalando os olhinhos. Na rua, andava alguns metros atrás dele, mãos dadas com as crianças e o olhar no chão. Só, não podia ir sequer às compras diárias. Conversava com os pais somente quando a visitavam, e sempre na ausência do bruto. “As portas estão abertas, filha, leve os meus netos”. Todos ainda lembram do dia em que o homem voltou para casa mais cedo e surpreendeu a mulher conversando com uma vizinha. Levou-a para dentro da casa alternando socos e pontapés. A fama de valente do Sargento corria por todo o bairro, muitas histórias de brigas onde ele sempre levava a melhor. Apontava na rua as mulheres que, dizia, dormiram com ele. Acreditasse ou não, ninguém jamais contestava.
Com o fim de evitar que a mulher saísse de casa sob qualquer pretexto, o Sargento ordenou que um cabo ficasse à disposição da esposa, o carro estacionado na porta, para os afazeres diários. Assim, o subalterno levava os filhos à escola, fazia compras, tudo sob as ordens de Isadora, esta proibida até de aparecer à janela. Ninguém melhor que o cabo para conhecer seu sargento, por isso se esmerava em cumprir sua missão, por medo de alguma punição e também por querer agradar àquela mulher ainda muito bonita e educada. Uma coisa o Sargento não conseguiu proibir à mulher, ostentar uma beleza natural que a cada dia mais se acentuava. Bem que tentou, num dia de maior fúria, queimando as roupas que pusessem realçar qualquer pedacinho do corpo que ele tanto maltratava. O cabo não entendia como uma mulher tão bela pudesse se submeter à brutalidade do seu superior. Isadora, gentil, oferecia almoço, lanche, doces, inicialmente recusados e logo depois aceitos. “Tão menino para essa vida dura de militar”. O garoto sorria e imaginava aquela beleza toda nos seus braços, a mulher louca por um carinho, um afeto, um beijo, um abraço, adivinhava seu corpo, fechava os olhos e podia sentir o calor que emanava da pele de Isadora.
Logo os dois tinham o assunto comum, os mandos e desmandos do Sargento e sua agressividade. E era assunto para tantas conversas que acabavam, quase sempre, em muitas risadas. E que risada tinha Isadora, era outra coisa que o brutamonte não conseguira tirar dela. O cabo já passava boa parte do dia em sua companhia, e já descobria um e outro olhar, ainda que tímidos. Era um moço alto e forte, dono de uma delicadeza que Isadora admirava. Um dia, tocaram-se ao acaso, um leve toque de mãos, mas o suficiente para despertar mais um sentimento que o Sargento não conseguira enterrar: o desejo de uma mulher bonita e madura. O menino não resistiu e ela conheceu seu segundo homem, bem diferente do primeiro. Sem dor. Descobriu o sexo com carinho, entrega. Isadora descobriu no garoto, o prazer. Mal o valente saía pela manhã, o cabo tomava seu lugar à cama, cumpria sua missão de impedir que a mulher saísse de casa. Sabiam, os amantes, que o militar jamais desconfiaria deles, um subalterno e uma mulher, nascidos para obedecer e sentir medo, esses seres covardes.
O dia passou a ser insuficiente para os dois. Duas noites por semana, ia o marido para o carteado e o cabo para a cama. Quando o homem chegava, cansado e bêbado, ela fingia dormir ou penar com uma irresistível dor de cabeça. O bravo Sargento já não assustava Isadora. Quanto mais aumentava o amor pelo cabo, diminuía o medo do marido. As botas não tinham o lustro de antes, a farda não era mais impecável, um amassado aqui outro ali, botões brilhantes agora eram opacos. A farda do cabo era de dar inveja. Instruida pelo amante, ao menor gesto de reclamação do Sargento, Isadora punha-se a chorar , fingia crise nervosa e desmaio. O homem saía à porta da casa, gritava pelo cabo e ordenava que providenciasse remédio ou médico para a esposa, sai para o quartel com a consciência leve dos que tem o dever cumprido...O tempo passando, o chefe da casa passou a ser um estorvo. ”Uma pedra no caminho”, dizia o cabo. “Coisa inútil é para o lixo”, setenciava a mulher. O estorvo carregado de dívidas contraídas na mesa de jogo e nas espeluncas de mulheres, cada uma delas ostentando uma jóia presenteada e não paga. Os amantes bem que gostariam que algum credor pusesse fim à vida do bruto...Haveria muitos suspeitos capazes de tal façanha.
Isadora recebeu a notícia pelo telefone, fingiu choro, tremedeira e desmaio. O Sargento morto, à noite, quando voltava para casa, bêbado, emboscado por não se sabe quem, seis tiros, sendo um deles entre os olhos, requintes de crueldade denotando vingança.
No dia em que completaria dez anos de vida em comum com o falecido, a viúva Isadora disse à mãe que marcara casamento com um ex-cabo, recentemente promovido a sargento.

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