11/11/2009

O QUE ELES TÊM COM ISSO?


“Não me lembro claramente do momento em que a idéia bateu na minha cabeça. Bateu, porque pensamentos assim não aparecem lentamente e vão tomando conta da gente. Bateu, porque veio de repente e de repente ficou, porque eu aceitei uma coisa martelando, machucando, doendo. Foi natural, precisava dar um fim naquilo, falar, desabafar, amar aquela mulher. Quando me esforçava para por minhas idéias em ordem lembrava das aulas de literatura. Ia para casa, depois da aula, pensando nela. A professora era bonita, o rosto dela iluminava quando falava daqueles pronomes, verbos, advérbios, o corpo dela dançava na sala, como se estivesse num palco, o quadro era o cenário, eu me via aplaudindo a atriz, o texto era ruim, não me interessava muito. Por culpa de alguns baratos, bagulhos, afins e tais, fiquei meio atrasado, deveria estar em tempo de faculdade, ou, na pior, em tempo de vestibular, mas por causa daquelas forças maiores, atrasei uns dois ou três anos. Aqui no bairro tem alguns como eu, culpa desses problemas sociais que todo mundo conhece. É por isso que acho que sou mais sarado, mais vivido que os outros. São uns otários, nóias. Eu não sou, passei dessa fase, penso que ela me olhava de outro jeito, como se quisesse que eu fosse seu homem, amante, namorado, os olhos dela cresciam sobre mim, e eu encarava, olhava firme e pensava no seu colo, na sua boca e, algumas vezes, até saí da aula, para fumar e refrescar minhas idéias. O médico que meu pai conseguiu, e minha mãe me levou, não entendeu bem essa parte, na verdade ele nunca entendeu nada do que falei, ficava ouvindo, ouvindo, anotando, anotando, e depois mandava voltar semana que vem, mesma hora. Eu voltava e falava tudo de novo, ele perguntava de droga e do meu pai e da minha mãe e do meu irmão e eu pensava: o que eles têm com isso? No dia do fato acontecido eu insisti, quase que falei só nela, que me provocava, que olhava me querendo, mas o panaca mudava de assunto e perguntava da droga, do meu pai e do meu irmão e da minha mãe e eu pensava, com raiva: o que têm eles com isso? O problema era ela, o giz acariciado em sua mão riscava no quadro um poema pornográfico, repleto de rimas, as palavras intercaladas num jogo que me deixava louco, eu lia aquilo e sentia o ritmo de corpos indo e vindo. Sua voz chegava em mim como um sopro vindo do céu, e invadia meus ouvidos e tomava conta do meu corpo, e me gelava e, em seguida, me esquentava. É isso o que acontecia, é isso que queria contar ao bobão e ele só perguntava das drogas e da família. Quando mudei de médico, as perguntas recomeçaram, mas este não escrevia tanto, mais ouvia que anotava e, às vezes até sorria, por isso falei mais, contei que usava drogas socialmente, não como meu irmão que é um viciado, eu sempre fui mais esperto e inteligente do que ele, sei me controlar. Falei do meu irmão quando me perguntou da família, em vez de dizer o que eles têm com isso? contei que meu pai não trabalha faz muito tempo, quem trabalha é minha mãe, uma santa que só faz chorar e apanhar do velho. Ele bebe muito. Crescemos assim, eu e meu irmão, apanhando e tirando ele de cima da mãe. Meus pais já conheciam a professora, foram juntos na escola, conversaram com ela, não sei o que, nunca me contaram, só me mandaram para o médico. Você é o terceiro, doutor, por isso não precisa perguntar nada, vou contando tudo, nunca fui doente, se existe culpa é só dela, com aquele avental branco e justo. Quando me bateu a idéia de falar com ela, falar de mim, de nós dois, eu a segui. Foi depois da aula, ela subiu no ônibus, eu sentei na frente e ela nem me viu. Quando desceu, andou por uma rua escura e então a chamei, ela assustou-se e depois me reconheceu. Eu só queria falar com ela, a sós, num lugar como aquele, sem ninguém para atrapalhar, essa era a idéia que me perturbava a cabeça. Quando comecei a falar ela me beijou, um beijo longo e demorado, ansioso, eu comecei a sentir uma espécie de explosão dentro de mim e ali mesmo, na calçada fizemos amor, uma, duas ou três vezes, nem sei, sei dos seus gemidos, ela me puxava, apertava e arranhava. Foi aí que senti minha cabeça doer e girar, acho que desmaiei e me vi sentado, junto à parede, como num pesadelo eu via tudo e não podia me mexer, juro que quis interferir, meu corpo não me obedecia, não conseguia mover um músculo sequer. Não sei como eles chegaram até lá, penso que me seguiam. Meu pai em cima dela, como um animal, meu irmão, drogado e impotente não conseguia impedir. O velho levantou, satisfeito, pegou uma pedra enorme e começou a bater na cabeça dela, meu irmão sentou ao meu lado, as mãos nos olhos. O pai bateu muitas vezes, eu vi a cabeça dela sumir na massa vermelha. Eu queria fechar os olhos, mas nem isso consegui. Minha mãe não disse nada, ficou olhando, é uma santa, só faz apanhar e chorar”.

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