16/11/2009

MESTRE, ME CONTA...

- Mestre, me conta os segredos do mar.
- Segredos, menina, não posso contar.


O primeiro amor de Nicinha foi um namoradinho, quando contava doze anos de praia e mar. Foi amor de mãos trêmulas, tensas, tímidas. Foi amor de boca fechada, medrosa. O mocinho nascido na vila dos pescadores. Ela não era dali, contam os habitantes que chegou nos braços do pescador Julião, uma beleza ainda bebê, enrolada em muitos panos, vinda da cidade e nascida não se sabe de qual ventre ou de qual semente. O segundo amor foi um moço desconhecido, um turista que mexeu com seu corpo de dezesseis, que abriu sua boca, ensinou os caminhos com mãos firmes, orientou sua língua e manchou a areia com sangue e marcou seu coração com uma dor gostosa e desconhecida. Depois sobraram o mar, as pedras, a areia, os peixes de todo dia, os pescadores esperançosos e suas mulheres que esperavam, os garotos que nadavam e esperavam o dia de ir para a pesca e os segredos que a vila escondia. Menina Nicinha esperava. Filha de muitas mães, sobrinha de muitos tios e tias e o grande segredo do pescador Julião. Quando criança, ouvia dos meninos que era filha de uma sereia e que seu pai era um pescador que morreu no mar. Ela chorava temendo ver crescer um rabo de peixe e soluçava com medo de perder Julião para o mar. “Me conta, Julião.” O mestre e a calma dos pescadores: "Não conto segredos..." Nicinha deitada, a cabeça descansando nas pernas dele, carinho de mãe nos cabelos lisos: "Minha menina nasceu do amor".
Em dias de pesca boa alguns se reuniam na praia, à noite. Noites de fogueira, peixe, cachaça, histórias e cantoria. Era quando alguns segredos se revelavam. Era quando Nicinha deixava os meninos e ficava com os adultos, esperando que a cachaça soltasse a língua e o pensamento de Julião. Em vão. Eram palmas ritmadas, as mulheres cantando: “Mestre, me conta segredos do mar”, e os homens respondendo : “Segredos, menina, não posso contar”. Julião contava outros casos, do mar, dos pescadores, de morte, de amor, da cidade grande, como aprendeu os segredos da pesca, como foi acolhido pela vila. De Nicinha não falava, segredo não é para contar,,,
Quando saia para a pesca, a menina ia junto. Na praia, o beijo no rosto e o desejo de sorte. Julião dizia que beijo de criança trazia sorte. Sempre à mesma hora, a hora em que as mulheres esperam, ela voltava para a praia, sentada em uma pedra a menina esperava, ansiedade, cantoria, angústia, reza, esperança, certeza. Era um pontinho preto no final do horizonte que só a menina via. A esperança vinha de Deus, mas a certeza vinha de Julião. Mal o pescador desembarcava e já ganhava outro beijo da menina. Julião dizia que beijo de criança remoçava. Depois ela ia conferir, na embarcação, se o primeiro beijo cumprira a tarefa, transformando sorte em peixes. Os peixes do vestido novo, dos doces, dos brinquedos, da festa na areia. Ela dizia que eram os peixes de mestre Julião. Ele dizia que eram os peixes dos beijos de Nicinha.
Mestre Julião saiu mais cedo, sozinho. Não queria que sua menina de vinte anos, acamada com febre alta, doença de mulher segundo uma das tias, afrontasse o sereno por um beijo de sorte. Mais dois ou três chás e já estaria sã, era forte como ele e esperta como a curandeira. Ele foi em busca dos peixes de Nicinha. O mar tem segredos, nenhum pescador conhece todos. O mar tem segredos: é como a mulher. O mar engana: é como a mulher. O mestre sempre brincava com o mar e com as mulheres. Dizia que só brincava com seus amores. E respeitava seus amores. Sempre falava, em dias de festa, que preferia ser traído por uma mulher, pois quando o mar engana parece que mil mulheres o traíram. Nesse dia, duas mil mulheres conspiravam contra ele. O mar e Nicinha. Dois mares com febre, pela primeira vez, praguejaram contra Julião. O mestre não sabia do que a menina era capaz para se vingar de um beijo desprezado...
O pescador sabia, como ninguém, interpretar os desejos da natureza. O céu, o vento, o mar, tudo mostrava um dia de boa pesca. Horas depois, dois mil peixes sob os pés de Julião. Vai ter festa na vila para receber os peixes dos beijos de Nicinha. Vestido novo para namorar o moço bom da cidade, o vestido rosa de pontos pretos.
Dois mil pontos negros substituem as nuvens claras. Dois mil traços elétricos clareiam o céu escuro. Duas mil ondas engolem peixes e pescador. O mar tem segredos. Julião tem segredos. Ninguém conta segredos. Ele nada, é forte. O mar é forte.

“Ah, boca negra, cadê o batom azul, cadê os dentes verdes, cadê o gozo branco? Cadê minha Eunice da cidade grande? Na fila do banco, namorando o caixa Julio”.

O pescador se cansa, dois braços querendo vencer dois mil braços, o mar não cansa.

“Ai, Julinho, tem em mim três braços que empurram e puxam”.
“São ondas, meu amor. Deixo dentro a espuma branca. É semente que há de florir”.

Onde está o ar que o hálito de Nicinha perfumou? Horrível hálito de peixe. Nicinha cheirava a leite. Nicinha cheira a flor. Duas mil podridões a sufocar o cheiro da menina.

“Julinho, bendita onda que me invadiu e semeou, flor que sorri no berço o seu sorriso. Vamos embora, meu anjo. Ele matará a nós e nosso fruto. Tem a força e maldade de dois mil diabos”.

Onde está a voz de Nicinha: mestre me conta segredos do mar? Duas mil bruxas rindo em seus ouvidos.

“Flores para perfumar seu leito de morte, minha Eunice. Nicinha ainda tem a mim. Bastam duas mãos para arrancá-la do maldito, meu amor. Duas mãos para tirar a vida e também para dar vida à nossa menina”.

Pescador com mãos de tirar vida. Mãos para dar vida à Nicinha. O mar tem duas mil mãos que apertam a garganta, entram pela boca, pelo nariz, alcançam os pulmões, seguram as pernas, prendem os braços.
Nicinha espera, há muito já passou a hora em que as mulheres esperam. Há muito os outros barcos chegaram da pesca. Foi dia de pesca boa. À noite voltaram ao mar, procurando o mestre. De madrugada, a praia era só barcos regressando sem peixes, sem festa, sem Julião. De manhã ainda viam Nicinha na pedra, ansiedade, cantoria, angústia, reza, esperança. A esperança vinha de Deus, a certeza vinha de Julião. Olhava para trás, querendo ver o rabo de sereia, para mergulhar e buscar o mestre. "Mestre, me conta segredos do mar. Segredos, menina, não posso contar". Era um pontinho preto na linha do horizonte que só a menina podia ver. Levantara da pedra e olhava satisfeita, os gritos ouvidos por toda a vila. “ Mestre, me conta”. Os habitantes correram para a praia, pena da menina. Os meninos chegaram para ver a louca. Os gritos de "Mestre me conta". Alguém viu um ponto negro. A menina Nicinha no mar, as pernas fincadas na areia, resistindo às ondas. Alguém jurou que vira um barco. Outros viram. Um falou que era barco de outra vila. Alguns lançaram barcos para conferir. Logo era uma dança de barcos navegando alegres rumo à praia. Na areia eram gritos de felicidade. Os meninos fazendo eco com a louca. Julião desembarcando, a menina nos braços dele parecia uma beleza de bebê enrolada em muitos panos. A boca no ouvido do pescador sussurrava: “Mestre, me conta”. E o mestre respondia: “Vamos, minha Eunicinha, vou contar os segredos do mar”.

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